terça-feira, 21 de março de 2023

Levei quarenta anos
para chegar ao meu início
e começar uma vida
contigo.

— Fabrício Carpinejar 

sábado, 15 de outubro de 2022

sétima porta

Tenho embarcado sempre na segunda porta do penúltimo vagão, sétima porta de trás pra frente; porta cinco dois ou cinco sete, como são enumeradas dentro do trem. A quem quer evitar contato e sabe dessa mania, quer dizer, dessa sistematicidade besta de quem quer ser encontrado ao acaso, as coisas ficam mais simples. Na estação que embarcas na volta, pus meu focinho para fora. Não te vi. Também não era hora, estava muito adiantado em relação a ti, mas mesmo assim te procurei no acesso à estação, com o trem em movimento, futilmente.

Saudade de acompanhar.

No ônibus, um sujeito completamente sem noção, sentou-se literalmente sobre meus pés; estava no banco alto e ele não se importou. E me olhou contrariado como se fosse minha culpa ele ter se sentado nas minhas patas, coisa que ele percebeu depois de, bruscamente, tirá-las debaixo daquele rabo seco. Ou, talvez, vai saber, o tipo tenha lá fetiche por se sentar sobre os pés de desconhecidos no transporte público e o tenha feito intencionalmente. Seria uma parafilia?

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

monstrinhos

Estava à espera da aula, tomando café e dando umas tragadas. Sabes bem que que esse lugar é cheio de árvores. E mato atrai bicho, o lugar deles, enfim. E, olhando para o telefone à espera fútil de uma mensagem tua, noto uma lagarta enorme com mais pelos que eu mesmo tenho no corpo na minha bolsa como se lá fosse o território dela. Que acinte da repulsiva. E, além dessa abusada, havia outro bicho, bem esquisitinho, que quando se move o corpo fusiforme descreve uma parábola. Odeio essas coisinhas.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

notificações

Sabes que pouco falo ao telefone, seja por texto ou voz. E, não sabes a irritação que é receber uma notificação e, ao abrir o telefone, ver que não é tua. Praguejo contra o infeliz que me enviou a mensagem como se ele fosse meu mortal inimigo. Sei que isto resulta dos lapsos de nossas falas, sempre amplos demais para meu gosto.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Der Zauber

O vagar do tempo, inexorável que é, nos faz diferentes. E, depois de tanto calejar, como, novamente, conseguir amar?

sábado, 2 de abril de 2011

O juiz sorriu, dançou uma quadrilha, fez a corte e pensou consigo mesmo: não será um sonho, tudo isso? O cômodo sujo na isbá do conselho local, o feno amontoado no canto, o rumor das baratas, a mobília miserável e abjeta, as vozes das testemunhas, o vento, a nevasca, o risco de se desviar da estrada, e de repente aquelas acomodações magníficas  muito claras, o som do piano, moças bonitas, crianças de cabelos cacheados, sorrisos alegres, felizes — tamanha transformação lhe pareceu digna de um conto de fadas; e era inacreditável que uma transformação tão grande fosse possível a uma distância de apenas três verstas e a uma hora de viagem. Mas pensamentos tristes impediam que Lijin se alegrasse e ele não parava de pensar que aquilo à sua volta não era vida, mas lascas de vida, migalhas, que tudo aquilo era fortuito, não se podia tirar nenhuma conclusão definitiva; e ele até sentia pena daquelas mocinhas que vivem ali e terminam suas vidas naquele fim de mundo, na província, longe dos ambientes cultos, onde nada é fortuito, tudo é consciente, legítimo, e onde, por exemplo, todo suicídio tem uma razão de ser e pode ser explicado, porque tudo o que acontece tem um significado, no turbilhão geral da vida. 
Anton Tchekhov, O assassinato e outras histórias. Trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, São Paulo, 2002, p. 176  — Em serviço.
— No tempo da servidão era melhor — disse o velho, enquanto enrolava seda. — O sujeito trabalhava, comia, dormia, tudo na sua hora. No almoço tinha sopa de repolho e mingau, de noite também davam sopa de repolho e mingau. Pepino e couve, isso tinha à vontade: a gente comia livremente, o quanto a alma quisesse. E havia muita severidade. Todo mundo andava na linha.
Anton Tchekhov, O assassinato e outras histórias. Trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, São Paulo, 2002, p. 116  — Os mujiques.
Mária contou que nunca estivera  em Moscou e nem mesmo na sede do seu distrito natal; era analfabeta, não sabia dizer nenhuma prece, nem sequer o "Pai nosso". Ela e a outra nora, Fiokla, que agora estava sentada a certa distância e as escutava eram extremamente ignorantes não conseguiam entender coisa alguma. Não gostavam de seus maridos; Mária tinha medo de Kiriak, chegava a tremer de pavor quando estava com ele e, perto do marido, sempre se sentia desnorteada, tão forte era o cheiro de vodca e tabaco que ele exalava.
Anton Tchekhov, O assassinato e outras histórias. Trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, São Paulo, 2002, p. 96-7  — Os mujiques.
Em honra às visitas, prepararam o samovar. O chá tinha cheiro de peixe, o açúcar estava roído e cinzento, sobre o pão e a louça circulavam baratas; beber aquilo era repugnante e a conversa também era repugnante — só falavam de miséria e de doença.
Anton Tchekhov, O assassinato e outras histórias. Trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, São Paulo, 2002, p. 94  — Os mujiques.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Como fora que esses dois tinha chegado a casar-se, e como se dava um com o outro? A cidade lembrava-se daquela decisão brusca que com que procedera, havia dezoito anos, Thomas Buddenbrook, que então tinha trinta. "Esta ou nenhuma", dissera ele. Com Gerda, as coisas deviam ter sido parecidas: até a idade de vinte e sete anos, em Amsterdam, rejeitara todas as propostas, enquanto, imediatamente, aceitara este pretendente. Logo, um casamento de amor, era o que diziam. Embora de má vontade, tinham de admitir que os trezentos mil marcos de Gerda, nessa aliança, haviam apenas desempenhado papel secundário. Mas pelo outro lado percebera-se, desde o começo, muito pouco amor entre os dois, ou pelo menos aquilo que se entendia por amor. Desde o começo verificara-se nas suas relações apenas cortesia, uma cortesia absolutamente singular entre esposos, correta e respeitosa, a qual, coisa incompreensível, não se baseava em distância e estranheza interna, mas sim em recíproco conhecimento e intimidade, de caráter muito singular, mudo e profundo. Os anos nada haviam mudado.

Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 564-5.
"Thomas, de uma vez por todas: você nunca compreenderá nada de música como arte. Por mais inteligente que seja, jamais perceberá que ela representa mais do que uma distraçãozinha de sobremesa, um pequeno regalo dos ouvidos. Na música você carece de sentido para discernir o que é banal, senso que tem em outros assuntos... É justamente ele o critério da compreensão e assuntos de arte. Quão alheia a música lhe é pode concluir do fato de que seu gosto musical no fundo, absolutamente não corresponde às suas demais opiniões e necessidades. Que é que lhe agrada na música? Certo espírito de otimismo insípido; se você o encontrasse encerrado num livro, iria atirá-lo pela janela, indignando-se ou zombando dele. Realização pronta de qualquer desejo inspirado?... Satisfação imediata e amável da vontade mal instigada... Será que as coisas se passam no mundo como numa melodia bonita? Este idealismo não deixa de ser tolo."

Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 449.
James Möllendorpf, decano dos senadores comerciários, morreu de modo grotesco e horripilante. Esse ancião diabético em tal grau perdeu o instinto de conservação que nos últimos anos de vida sucumbira cada vez mais a uma paixão por bolos e tortas. O Dr. Grabow, médico também dos Möllendorpf, protestara com toda energia de que era capaz e a família, preocupada, com branda autoridade, privara seu chefe dos doces e artigos de padaria. Mas o velho senador, mentalmente débil como era, alugara um quarto em qualquer parte de uma rua pouco conveniente, na pequena Gröpelgrube, atrás do Bastião ou no Engelswisch; e para ali, para esse cubículo que não passava de um verdadeiro buraco, arrastava-se às furtadelas, a fim de comer torta... Lá é que haviam encontrado o corpo exânime, a boca ainda cheia de bolo meio mastigado, cujos restos lhe sujavam o casaco e cobriam a mesa pobre. Uma apoplexia mortal precedera a consumação progressiva.
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 359.
Por vezes, quando a consulesa sofria de enxaqueca, cabia à Sra. Grünlich administrar a casa e fixar o cardápio. Um dia, em que um pregador forasteiro, cujo apetite causava alegria geral, se hospedara na casa. Tony, perfidamente, mandou fazer sopa de toucinho, prato especial da cidade: um caldo preparado com ervas avinagradas, e no qual boiava todo o cardápio do dia — presunto, batatas, ameixas azedas, passas de pêra, couve-flor, ervilhas, vagens, nabos e outras coisas —, tudo adubado com molho de frutas. Quem não estivesse, desde criança, acostumado a essa comida, seria incapaz de tragá-la.
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 216.
A pequena Klara, criança loiro-escura de olhos bastante austeros, estava sentada na mesinha de costura, junto à janela, com um bordado nas mãos. Klothilde, entregue ao mesmo trabalho, encontrava-se no sofá, ao lado da consulesa. Não era muito mais velha do que sua prima casada, tinha apenas vinte e um anos. Mas o rosto comprido já começava a mostrar linhas acentuadas, e o cabelo liso e dividido ao meio — cabelo que nunca fora loiro, mas sempre de um cinza embaciado — contribuía muito para completar o retrato de uma solteirona. Estava satisfeita com essa evolução, nada fazendo para remediá-la. Talvez tivesse necessidade de envelhecer rapidamente para fugir logo de qualquer dúvida ou esperança. Não possuindo nenhum vintém, sabia que não haveria ninguém no mundo para casar-se com ela, e encarava humildemente seu futuro num pequeno quarto, vivendo da pequena mesada que o tio poderoso lhe conseguiria duma instituição de auxílios a moças pobres e de boa família.
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 160.
— Mas é que, justamente, não quero esquecer! — gritou Tony completamente desesperada. — Esquecer... será que esquecer consola?
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 140.
O velho talvez estivesse recordando como, havia quarenta e seis anos, sentara-se junto ao leito de morte da primeira esposa. Talvez comparasse o desespero que naquela ocasião se apossara dele à melancolia pensativa com que observava agora, envelhecido, o rosto transformado, inexpressivo e horrivelmente indiferente da velha senhora, dessa mulher que nunca lhe proporcionara grande felicidade, nem grande dor, mas que vivera ao seu lado durante muitos, longos anos com tato e prudência e que, naquele momento, se ia embora, vagarosamente.
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 62-3.

domingo, 13 de março de 2011

Monogamia não é obrigação, muito menos heroísmo, tampouco caridade, é inventar um amor tão bom para repeti-lo todo dia'.
— Carpinejar

quinta-feira, 10 de março de 2011

Um homem bom e modelar,
Um sujeito complacente:
Faz sopa, cuida do bebê
E tem cheiro de aguardente...
Thomas Mann, Os Buddenbrook. Trad. Herbert Caro, Círculo do Livro, São Paulo, 1981, p. 45.

quarta-feira, 9 de março de 2011

hoje, para anotar qualquer coisa de urgente, peguei uma folha de papel que estava sobre a escrivaninha, uma folha de algum bloco de notas, com os furos rasgados das espirais na parte de cima, folha que estava dobrada; ao abri-la, a marca dos teus lábios em vermelho se mostrou aos olhos meus, marca feita por ti para retirar o excesso de batom dos lábios; guardei com cuidado a folha na gaveta, procurei outro lugar para anotar o que me era urgente, e, como ontem, fiquei a pensar na beleza dos teus lábios por um tempo estéril.

segunda-feira, 7 de março de 2011

escravatura e servidão na gênese literária

Eu não disse nada para comparar. Comparações são fáceis e inúteis, produzem apenas apreciações de clichê. Não chegam a penetrar no coração da criação pessoal; e justamente isto é minha mui modesta ambição. Para tentá-lo, vou escolher um processo estranho, estranho como o meu assunto. Vou construir uma teoria para apanhar minha vítima, vou construí-la de pedaços de outras criações, alheias, com as quais Graciliano Ramos não tem nada que ver, vou colher esses pedaços, entregando-me ao jogo da livre das associações. "Gastei meses construindo essa Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas que se confunde com ela". Vou construir o meu Graciliano Ramos.
"Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios  do copiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo Carlos Magno, sonhando..." Logo me lembro do pintor incomparável da vida estática, imóvel, inconsciente, nos "engenhos" escravocratas da Rússia tzarista, daquele Gontcharov de quem me lembrei quando li comparações do Brasil escravocrata com a Rússia servil. Os romances de Gontcharov pintam classicamente um mundo primitivo, amoral, "a-trabalhador", preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idílios de pura "art pour l'art"; são acusações terríveis contra o regime, contra o Estado russo, que quis movimentar esse mundo imóvel por pretensas reformas econômicas e sociais. O  primeiro romance de Gontcharov chama-se: Uma história simples; o último: A queda.
Otto Maria Carpeaux in Graciliano Ramos, Angústia, 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 240-1.

o fogo se apagou

Homem de poucas palavras, trabalhador, o sujeito mais sério do mundo. Dedicava-se a vários ofícios, era agricultor, redigia procurações e petições. Beirando os setenta, começou a vender macacos. Os olhos cansaram, a memória emperrou, os braços descarnados não tiveram força para manejar a enxada, a garlopa, o martelo de ferreiro e a tesoura de metais. Seu Evaristo fabricava muitas coisas, mas não se ajeitava em nenhuma profissão. E quando a velhice chegou, sentiu-se fraco, uma tremura nos dedos, que seguravam mal o cajado. Andando formava dois arcos: um por detrás, nas pernas, outro adiante, no peito; sentado firmava as mãos na extremidade do cacete, e sobre as mãos, duras e peludas, de veias enormes, assentava o queixo, donde pendiam pelancas escuras que balançavam com teias de pucumã. Foi baixando, baixando, e na casinha que se escondia na Rua da Cruz o fogo se apagou. Nos meses compridos daqueles invernos de serra seu Evaristo e a mulher tremiam e começavam a tresvariar, porque a fome era grande. À noite andavam tropeçando nos cacarecos, pois na casa não havia candeia, olhavam a rua triste sob a chuvinha impertinente de que embaçava os vidros dos lampiões esmorecidos. Apertavam-se para enganar o frio [...]. 
Graciliano Ramos, Angústia. 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 156-7.

soltos a voar

D. Rosália resfolegava e tinha uns espasmos longos terminados num ui! medonho que devia ouvir-se na rua. Antes desse uivo prolongado o homem soltava palavrões obscenos. Parecia-me que meu quarto se enchia de órgãos sexuais soltos, voando. 
Graciliano Ramos, Angústia. 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 106.

remédios brutos

Lembrava-me de outro indivíduo infeliz, um sertanejo que vi há muitos anos, quando ele saía da prisão depois de cumprir sentença. Era um cearense esfomeado que tinha aparecido na vila em tempo de seca. Esmolambado, cheio de feridas, trazia escanchada no pescoço uma filhinha de quatro anos. Tinham ido morar na rua das putas e viviam de esmolas. Um dia as vizinhanças ouviram gritos na casinha de palha e taipa que eles ocupavam. Juntaram-se curiosos, olharam por um buraco na parede e viram o homem na esteira, nu, abrindo à força as pernas da filha nua, ensangüentada. Arrombaram a porta, passaram o homem na embira, deram-lhe pancada de criar bicho — e ele confessou, debaixo do zinco, meio morto, que tinha estuprado a menina. Processo, condenação no júri. Anos depois os médicos examinaram a pequena: estava inteirinha. O que havia era sujidade e um corrimento. Tratando a menina com remédios brutos da medicina sertaneja, o homem tinha sido preso, espancado, julgado e condenado.
Graciliano Ramos, Angústia. 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 68.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Escrever

Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o vício de ler romances e posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e da rima, um livro de versos. Eram duzentos sonetos aproximadamente. Não me foi possível publicá-los, e com a idade compreendi que não valiam nada. Em todo caso acompanharam-me por onde andei. Um dia na pensão de d. Aurora, o meu vizinho Macedo começou a elogiar um desses sonetos, que por sinal era dos piores, e acabou oferecendo por ele cinqüenta mil-réis. Nem foi preciso copiar: arranquei a folha do livro e recebi o dinheiro, depois de jurar que a coisa estava inédita. Macedo transigiu comigo umas vinte vezes. Infelizmente voltou para São Paulo sem concluir o curso.  Desde então procuro avistar-me com moços ingênuos que me compram esses produtos. Antigamente eram estampados em revistas, mas agora figuram em semanários da roça, e vendo-os a dez mil-réis. O volume está reduzido a um caderno de cinqüenta folhas amarelas e roídas pelos ratos.
Graciliano Ramos, Angústia. 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 47.

Não é ódio

Ninguém falava sequer do ódio aos russos. O sentimento que experimentavam todos os tchetchenos era mais forte que o ódio. Não odiavam, simplesmente não reconheciam aqueles cães russos como gente. Era uma sensação de asco e estupefação ante a crueldade absurda daquelas criaturas, e o desejo de destruí-las, a exemplo de destruir os ratos, as aranhas venenosas e os lobos, era um sentimento natural como o instinto de conservação.
Liev Tolstói, Khadji-Murát. Tradução Boris Schnaiderman, Cosacnaify, p. 156.

Aul destruído

Sado, em casa de quem Khadji-Murát se detivera, fora com a família para as montanhas, quando os russos se aproximaram do aul. Voltando, encontrou a sua sáklia destruída, o telhado derrubado, a porta e os postes da galeria queimados  e todo interior da casa coberto de imundície. O seu filho, aquele rapazinho bonito, de olhos coruscantes, que tinha olhado com deslumbramento para Khadji-Murát, fora trazido morto para a mesquita, sobre um cavalo coberto com uma japona. Tinha as costas atravessadas por uma baioneta. A mulher de ar venerável, quer servira a refeição a Khadji-Murát durante a sua visita, estava agora com a camisa rasgada no peito, deixando à mostra os seios decrépitos, pendentes, e, os cabelos soltos, mantinha-se curvada sobre o filho, dilacerando o rosto com as unhas e vociferando sem cessar. Sado apanhara a pá e a picareta e fora com os parentes cavar o túmulo do filho. O velho avô estava sentado contra a parede da sáklia destruída e, afinando uma vareta, olhava estupidamente diante de si. Acaba de voltar do seu comeal. Foram incendiada as duas medas de feno que lá havia, quebradas e queimadas as cerejeiras e os abricoteiros plantados pelo velho e, sobretudo, destruídas todas as colmeias. Ouvia-se o uivar das mulheres em todas as casas e na praça, aonde foram levados mais dois corpos. As crianças pequenas urravam, acompanhando as mães. Urrava também o gado faminto, que não recebia mais nada para comer. As crianças mais crescidas não brincavam, encarando os adultos com olhos assustados.
Liev Tolstói, Khadji-Murát. Tradução Boris Schnaiderman, Cosacnaify, p. 154-5.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O czar Nicolai

A lisonja permanente, asquerosa e sem rebuços dos que o cercavam, reduzira-o a tal estado que não via mais as suas contradições e não fazia mais concordar os seus atos e palavras com a realidade, a lógica ou sequer com o comezinho bom senso, e estava plenamente convencido de que todas as suas disposições se tornavam inteligentes, justas e coerentes entre si, pelo simples fato de provirem dele.
Liev Tolstói, Khadji-Murát. Tradução Boris Schnaiderman, Cosacnaify, p. 139-40.

Avdiéiev

Avdiéiev se virou mais uma vez, e o doutor passou muito tempo mexendo na sua barriga; finalmente, apalpou a bala, mas não conseguiu retirá-la. Passou sobre a ferida uma atadura, pregou-a com um emplastro pegajoso e saiu. Enquanto o doutor revolvia a ferida e pregava a atadura, Avdiéiev permaneceu deitado, os dentes apertados e os olhos fechados. Depois que o médico foi embora, abriu-os e olhou surpreendido em torno. Os seus olhos dirigiam-se para os demais internados e para o enfermeiro, mas parecia não os ver e estar fixando algo diferente, que o espantava.

Liev Tolstói, Khadji-Murát. Tradução Boris Schnaiderman, Cosacnaify, p. 75-6.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Eu voltava para a casa, através dos campos. Estávamos precisamente no meado do verão. Fizera-se a limpeza dos pastos, e os camponeses preparavam-se para ceifar o centeio.
Nessa época do ano, há uma variedade maravilhosa de flores: trifólios felpudos e aromáticos, vermelhos, brancos, cor de rosa; margaridas insolentes, malmequeres brancos, jeitosos, de pólen amarelo vivo, com o seu fétido picante, de podridão; a colza amarela, recendendo a mel; campânulas brancas e roxas, altas, semelhando tulipas; ervilhas-de-cheiro; escabiosas ordeiras, flavas, vermelhas, rosas e lilases; a tanchagem de penugem rósea esmaecida e um perfume agradável, quase imperceptível; as centáureas de um azul intenso ao sol, quando desabrocham, e cerúleas, com tons avermelhados, ao anoitecer, quando se vão fanando; e as delicadas flores da cuscuta, que recendem a amêndoa e têm vida muito breve.
Liev Tolstói, Khadji-Murát. Tradução Boris Schnaiderman, Cosacnaify, p. 21.

Trifólio

Margarida

Malmequer

Colza

Campânula

Escabiosa

Flava (Feno-de-cheiro)

Centáurea

Cerúlea

Cuscuta

Ervilha de cheiro