terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Literatura

...tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tem cão caças com o gato, por outras palavras, quem não pode escrever pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças...

Saramago, História do Cerco de Lisboa, p. 12

sábado, 18 de dezembro de 2010

Dia

Levantei ao fim da manhã, depois de um estado de semissonolência que me prostrou por bem mais de uma hora; estive a dormir em meio a bagunça, um Nietzsche aqui, Nassar e Rahimi juntos, como que em par, algumas peças de roupas pela cama, um Saramago que estive a ler antes de adormecer na cabeceira, logo ao lado do meu despertador que encantadoramente não se manifestou ao fim da madrugada. É sábado. E a cama, ampla. Ao levantar me prostrei por longas três horas diante do computador, só, sem entabular conversa com ninguém, embora tivesse conectado a três comunicadores. Teimosamente deixei uma janela de conversação aberta, mesmo sabendo que inexoravelmente não conversaria. Passadas as horas, almocei e, depois, passei um tempo curto, não mais que dez minutos, ao telefone. A única forma de diálogo algo duradoura que não fosse, hoje, menos que um mero gracejo. Diálogo tal e qual a todo instante eu tentava observar algum contentamento nos timbres que me chegavam aos ouvidos; não tive tanta felicidade, senti certa tristeza, mesmo algum embaraço, como quem não anseia falar, a conversa durou poucos minutos, senti na voz que me falava, no final das contas, a vontade de encetar um rumo agradável à conversa, algo que me deixou sumamente feliz, mas a conversa já findava, aliás, me amesquinhei nessas poucas palavras doces para por termo a ela; menos de dez minutos, desligamos. Prostrei-me na cama e estertorei num sono curto, equivocado, que me rendeu um sonho de tessitura real e mórbida. Acordei num sobressalto, gastei um tempo estéril a divagar sobre o sonho como quem faz uma autoanálise em busca das motivações inconscientes que engendram tais torpores mentais. Senti-me ignóbil por me ter concedido a sesta: sempre que assim procedo padeço longas horas até conciliar sono à noite. Levantei-me, fui lavar louça do almoço, ensejando não dar vazão às conjecturas que me sobrevinham. Louças lavadas; o cheiro da comida persistia na cozinha e causava fastio. Voltei ao computador, tentei trabalhar, não consegui. Azedume. Livrei-me da languidez das conjecturas. Pensei em por ordem às coisas, a cama, o quarto. Nassar e Rahimi ainda estavam em par, havia um Weber empoeirado na escrivaninha, o que me deixou embaraçado comigo mesmo; os lençóis permaneciam caóticos. O quadro não era de modo algum promissor, afinal havia ainda algumas garrafas vazias, cinzeiros repletos e nauseabundos. Guardei o Weber na estante fazendo uma reverência estúpida a esse tipo recalcitrante. Quando me vi estava só e disseram-me para dar cabo das sobras do almoço se me apetecesse. Não encetei conversas quaisquer. Pus-me a ler sobre cinema, teoria literária e cinema novamente e, mais uma vez e por teimosia, teoria literária. Nessas leituras, desejei mais uma conversa. O telefone chamou até a ligação cair. Por duas vezes, metodicamente. Amuei-me. Depois de menos de uma hora, o telefone toca. Não fui feliz; as palavras me saíam tortas, desabridas, como que flutuando muito acima do contexto; os timbres me eram claros, esboçavam enfado e cansaço, muito embora me alegrassem; afinal os ouvia. Apurei a audição; não deixei escapar nenhum tom, nuance; objetivei dar alento, soei alarmante; a conversação durou um pouco mais, as palavras que ouvi, me confortaram, embora não possa dizer o mesmo das que proferi; fui desastrado; no entanto, estava amesquinhado no meu contentamento. Fiquei a digerir criticamente a falta de jeito, de cuidado; desejei me embebedar: assim o fiz.

poesia e prosa

Não sou bom com poesia, nem com companhias. Saio-me melhor na prosa, embora tu me disseste recentemente que mesmo ela é empolada. Então me vejo num certo apuro, pois mesmo naquilo em que me tomava como aceitável, outrora mesmo bom, não é verdade — embora meu amor próprio, teimoso que é, esteja a dizer-me o contrário. O caso é que hoje queria algo e tentaria dizê-lo via poesia. Desisti. Talvez a poesia, que diz a coisa por si mesma como um acontecer que não se extingue, não seja mesmo o meu métier. A prosa ao contrário, diz um estado, situação, sensação, enfim, de um modo que é capaz mesmo de transcender o que é dito, pois nela é dada a possibilidade de dizer o detalhe e não apenas o estado bruto, uma imagem acabada, coesa, existente por si mesma. E do fragmento, um excerto qualquer perdido entre tantos períodos e orações, se pode captar algo que transcenda o texto, uma perspectiva ou interpretação que traga à baila aquilo que não foi devidamente feito claro ao entendimento, enfim, a prosa tem a capacidade de transcender-se. Talvez esteja a ser injusto com a poesia. Não sou bom com ela. E ela tem sido má comigo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

objectualidades

A diferença profunda entre a realidade e as objectualidades puramente intencionais - imaginárias ou não, de um escrito, quadro, foto, apresentação teatral, etc. - reside no fato de que as últimas nunca alcançam a determinação completa da primeira. As pessoas reais, assim como todos os objetos reais, são totalmente determinados, apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma infinidade de predicados, dos quais apenas somente alguns podem ser 'colhidos' e 'retirados' por meio de operações cognoscitivas especiais. Tais operações são sempre finitas, não podendo por isso nunca esgotar a multiplicidade infinita das determinações do ser real, individual que é 'inefável'. Isso se refere naturalmente em particular a seres humanos, seres psicofísicos, seres espirituais, que se desenvolvem e atuam. A nossa visão em geral, e em particular dos seres humanos individuais, é extremamente fragmentária e limitada.

Idem, p. 32

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Em poemas ou romances tradicionais, a preparação especial dos aspectos é bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos poemas elípticos de Ezra Pound ou do último Brecht, em que a justaposição ou montagem de palavras ou orações, sem nexo lógico, deve, como num ideograma, resultar na síntese intuitiva de uma imagem, graças à participação intensa do leitor no próprio processo de criação (a teoria da montagem fílmica de  Einsenstein baseia-se nos mesmos princípios).

A personagem de ficção. Candido, Rosenfeld et alli. Ed. Perspectiva, São Paulo, 2002, p. 14.