sexta-feira, 15 de outubro de 2010

É bem, e o resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.


― Machado de Assis.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Falastrão

— Eu?
—Sim, você! O falastrão aqui é você! Quem mais poderia ser, diabos?
— Creio que, para um amigo, Fernando, você é um cara muito rude.
— Eu um tipo muito rude? Na verdade não. Você é que é um rapaz altamente sensível. E míope. Aliás, a sua miopia progride na exata medida da sua sensibilidade. Daí, quanto menos você vê, mais sensível fica.
— Por que me diz isso?
— Por que digo isso, António? Você deveria fazer sentido, enfim, você deveria levar suas ideias até o fim. Mas não, fica a me olhar com esses olhos de cão que acabou de apanhar dono sem...
— Mas — interrompe Fernando, exasperado — eu não estou entendendo.
— Claro, e se você continuar a me interromper, não vai mesmo compreender. O caso é que você fica aí com esses olhos de cão que acabou de apanhar do dono, fica aí como quem não entendeu, como uma vítima indefesa. O fato é que você deixa os demônios que existem apenas na sua mente a conduzir sua vida como se eles fossem efetivamente reais. E não são! Você, se continuar assim, vai ficar muito mais próximo da esquizofrenia do que de mim ou qualquer outro chegado seu. Mas não, dá razão aos demônios. E depois que os lança no focinho dos outros, fica atônito e sem entender as reações das pessoas.
— Mas você está falando do que eu te mencionei.... sobre a... — Pergunta António, com ares contrariados.
— Não, Antônio, estou falando sobre suas conjecturas epistemológicas! É evidente que sim, oras! Que tipo de cara é você? Dá vazão apenas a coisas ruins que poderiam acontecer apenas numa guerra mundial. Ninguém é tão pessimista assim, mas o problema é que seus pensamentos não têm relação com o real. E você os inventa! Os ouve e os despeja nos ouvidos alheios como se eles fossem latrinas. Em vez de dar cabo dos seus demônios por você mesmo, você, ao contrário, lança-os sem refletir com mais cuidado na primeira oportunidade que se lhe apresenta. E quem é que suporta isso, um cara que fala pelos cotovelos as primeiras e, claro, as piores impressões que tem a respeito de tudo o que se passa? Mesmo assim, as coisas ainda estão bem. Você ainda tem a sua pequena, o trabalho, os estudos, enfim, mas tome nota que, se continuar assim, isso não durará para sempre.
— É, é um tanto duro, mas acho que você tem razão...
— É evidente que tenho razão! E não tem nada de muito duro. Você é que é muito mole. E tome tenência, pois se continuar assim serei eu mesmo que o trancarei no manicômio.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Evidente

Tomo tudo que é teu,
escrito, falado ou declamado,
ao pé da letra.

Ou te enfado ou me esborracho.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Escrita medíocre

Essas mentes medíocres simplesmente não conseguem se decidir a escrever como pensam, pois acham que depois o resultado poderia adquirir uma aparência muito simplória. [...] Desse modo, apresentam o que têm a dizer com construções forçadas e difíceis, neologismos e períodos extensos, que circundam o pensamento e acabam por ocultá-lo. Oscilam entre o esforço para comunicá-lo e aquele para escondê-lo. Querem guarnecer o texto de modo que ele adquira uma aparência erudita ou profunda, para que as pessoas pensem que ele contém muito mais do que se consegue perceber no momento da leitura. Sendo assim, esboçam partes do seu pensamento em expressões curtas, ambíguas e paradoxais, que parecem significar muito mais do que dizem (exemplos excelentes desse gênero encontram-se nas obras de Schelling sobre a filosofia da natureza); logo voltam a apresentar seus pensamentos com uma torrente de palavras e uma verbosidade in-suportável, como se fossem necessárias sabe-se lã quais medidas para tornar compreensível seu sentido profundo, enquanto, na verdade, trata-se de uma idéia bastante simples, para não dizer até trivial (Fichte, em seus escritos populares, e centenas de imbecis miseráveis que não merecem ser nomeados, em seus manuais filosóficos, oferecem exemplos em abundância).
— Arthur Schopenhauer.