terça-feira, 25 de setembro de 2007

sorver

tão sem jeito
esse coração teu,

pouco comedido, precipitado
afeito apenas àquela

enxerga nela a margarida
fosse naquela flor, dantes amarela, vibrante

nas tuas madeixas, no teu olhar de menina
no refletir insinuante, te escapo aos braços

não chegas às notas altas,
às falas articuladas, ponderadas, cristalinas

mesmo a dizer não, tu percorre-me os ouvidos
no telefone, no curto recado do telemóvel

nas tuas imagens
nas tuas composições

dizes ainda que falta muito
para que vá onde queres

fica cá, ambivalente
a percorrer-me a memória

apenas um pouco de ti
teu calor, pudores

anseios teus
similares aos que construí

aqui, sem ajuda
para mim, apenas

sem nunca consultar a ti
a quem quer seja

vens, agora
não te vá, é tarde

esperançoso que queiras
dá me convites, vou

ora finjo esquecer
teimosamente.

mas estou cá,
com esses olhos de cão

seguindo, aproximando
rosnando e mordendo

o tempo todo
cenho franzido, rude, ressentido da tua falta

grosseiro de não chegar a ti
arrogante, farta-me de tanto saber

que desejo teu afagos
e minhas mãos, quentes de ti

das mechas até envolver-te
até tomar teu corpo, com força

a roubar teus lábios
sorvê-los.

escrevinhar

"Sou capaz de escrevinhar insolentes missivas e azucrinar o mais pacato dos cristãos, seja ele juiz de direito ou um bárbaro teutão."

o mau

Clint Eastwood

domingo, 23 de setembro de 2007

Teus timbres

Nouvelle Vague
20 Minute Loop
Delgados
Não bastam.
Quero aí ouvir a tua voz,
a narrar-me tuas histórias
a cantar-me tuas notas
a sussurrar nos meus ouvidos

Teus Timbres

Bildungsroman

Excertos do Jovem Törless de Robert Musil.

"...
— Sim, uns trechos novos de trigonometria, mas você vai acertar tudo, não há novidade.
— O que mais?
— Religião.
— Religião? Ah, é. Vamos ver... Acho que, quando estou animado, posso provar tão bem que dois mais dois são cinco quanto que só pode existir um Deus..." p. 28

"...
Törless entregou-se inteiramente à fluência deles, pois sua condição espiritual era mais ou menos a seguinte: em sua idade lia-se no ginásio Goethe, Schiller, Shakespeare, talvez até os modernos. Coisas que, semidigeridas, mais tarde são exteriorizadas por escrito, e surgem tragédias romanas ou poemas sentimentais, páginas inteiras de pontuação semelhante a uma renda delicada: coisas em si tolas, conquanto inestimáveis para que se tenha um desenvolvimento seguro. Pois essas associações, vindas de fora, essas emoções tomadas de empréstimo, ajudam os jovens a caminhar sobre um solo espiritual excessivamente macio desses anos, nos quais eles têm necessidade de descobrir o sentido de si próprios, ainda que imaturos demais para fazerem qualquer sentido. Não importa que alguns guardem vestígios disso e outros não; mais tarde todos aprenderão a conviver consigo próprios. O perigo reside apenas na idade de transição. Se nessa fase pudéssemos fazer o adolescente ver o quanto é ridículo, o chão abriria sob seus pés e ele despencaria como um sonâmbulo que, subitamente despertado, não vê senão um vácuo à sua frente." p. 14-15

"...
Mas já no dia seguinte teve uma grande decepção. Pela manhã, comprara o volume de Kant que vira na mesa do professor, e no primeiro intervalo pôs-se a ler. Mas com tantos parênteses e notas de rodapé, não entendia nada; e quando seguia escrupulosamente as linhas com os olhos, era como se uma velha mão descarnada fizesse seu cérebro girar em espirais, arrancando-o de dentro do crânio.

Quando, meia hora depois, parou exausto, havia gotas de suor em sua testa — e chegara apenas à segunda pagina.

Apertou os dentes e leu mais uma página até o intervalo acabar.

À noite, já não desejava nem tocar no livro. Medo? Repulsa? Não sabia. Só uma coisa o atormentava, nítida: era que o professor, pessoa de aparência tão apagada, tivesse aquele livro bem exposto no quarto, como se ele fosse uma diversão cotidiana." p. 108

Extraídos de O Jovem Törless. MUSIL, Robert. Ed. Nova Fronteira. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro, 1981.

Robert Musil, 1880-1942.


Sobre o escritor:
pt.wikipedia.org & en.wikipedia.org

Gabriela

Gabriela

Gabriela era dessas gajas barulhentas.
A reclamar a cada subida,
balouçando-se e rangendo por todos os recônditos
Hoje, carcomida pelo tempo
Pelas moçoilas mais novas
Amélias, Vitórias
Tomaram seu lugar
E elas mesmas andam já decrépitas
E ninguém sente saudades de ti,
Pois tu, Gabriela, foste sempre muito dura.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Dentista

Mote fresquinho.

Não mencionei, mas tenho certo pavor desses gajos que nos metem alicates, seringas e tudo mais na boca - e ainda dizem que é para o nosso bem. Certamente o é, mas sempre me sinto num açougue quando estou num consultório, com a desconfortável e real sensação de que a carne a ser trinchada ali, naquela cadeira, sou eu; não é encorajador, eu sei, nunca me recuso a ir ao consultório. Mas não gosto.