terça-feira, 16 de outubro de 2007

20 Minute Loop

The Name
Often people ask us what “20 Minute Loop” means, and because it alludes to something a bit obscure, it might behoove us to provide a little explanation. On private jets, the length of time on a digital cockpit voice recorder (CVR) that elapses before the recording begins to overlap and erase itself—an audio snake eating its tail—is twenty minutes. On commercial aircraft, the length of time on the CVR is thirty minutes. This way, there will always be roughly half an hour of cockpit conversation recorded in the unfortunate event of a crash. What we say before we die is very important to those who survive us. Famous last words are always famous, and everyone hopes that the dying will say something pithy and conciliatory, something that might suggest (we shiver with horror as we use this wretched word) closure. In the case of the CVR, investigators hope a revelation will emerge, a key to the crash; they carry the indestructible box—the “black box” that is more often orange—away from the twisted metal and carnage like a sacred reliquary. Too often, however, the pilots’ voices betray nothing but their terminal proficiency mixed with a touch of animal fear and a heavy dose of frustration for not being able to control the flying beast. Often they are eerily calm, transmitting their imminent doom to air traffic controllers who helplessly watch a green blip descend on a black screen.

This digital loop, this endless recording that awaits a disaster, is part of our mortal expectancy. Michel Montaigne wrote: “we prepare ourselves against the preparations of death.” He probably wasn’t thinking of a jumbo jet when he wrote in the Renaissance, but we can enjoy larger meanings, we hope, without feeling too ambitious. We are not scared of dying; we’re scared of its anticipation.

When we performed with I Am the World Trade Center and Smokey Hormel in 2002, a young man from the first band asked us (before he had heard our music) if we used a lot of tape loops and samples, as our band name implies. The simple answer is: No. But our sets usually run about half an hour, if not shorter, and this, of course, is the same length of time found on the CVR, and we do play the same songs, with some variation, from show to show and set to set, so maybe we do perform a kind of endless loop or sample of music that the audience rarely notices. Pop music, after all, is nothing if not repetition awaiting a disaster. Repetition is pleasurable and deep, just like the three-year-old who wants to read the same Maurice Sendak book over and over and over again, ritualizing the page-turning, the anticipation of wild things lurking in the paper leaves, mouthing the words along with the parent who feels anxious having to read this damned book one more time, only to cherish and preserve the battered copy once the child has grown older and moves on to richer repetitions that don’t include the parent.

So, like everything else, 20 Minute Loop refers to the lovely repetition of life that can never quite escape its expectancy of death. Aren’t you glad you asked?
Música. Mais informações em www.20minuteloop.com

O nome
Frequentemente as pessoas nos perguntam o que '20 Minute Loop' (Giro/Loop de vinte minutos) significa e, porque isso alude a algo um tanto obscuro, é necessário dar alguma explicação. Em jatinhos o tempo de gravação do gravador de voz digital (CVR) que passa até ele se sobrepor e apagar a si mesmo — como uma cobra a comer o próprio rabo — é de vinte minutos. Num avião comercial de linha o tempo de gravação do CVR é de trinta minutos. Assim, sempre haverá cerca de meia hora de conversa gravada na cabine de comando no caso de algum desastre. O que dizemos antes de morrer é muito importante para as pessoas que nos sobrevivem. As famosas últimas palavras são sempre famosas, e todos têm esperança de que aqueles que estão prestes a morrer digam algo de simples e terno, algo que possa sugerir (e nós trememos de horror ao usar essa palavra infame) o fim. No caso do CVR, peritos terão a esperança de que alguma pista surja, a chave para o acidente; eles levam a caixa indestrutível — a 'caixa preta' que é comumente laranja — para longe daquela mortandade e metais retorcidos como uma espécie de relicário sagrado. Muitas vezes, entretanto, as vozes dos pilotos traem nada mais que a competência de quem morrerá misturada a um toque de medo animal e uma pesada dose de frustração por não ser capaz de controlar a besta voadora. Com frequência suas vozes são estranhamente calmas, transmitindo seu iminente fim aos controladores de tráfego que assistem impotentes um ponto verde a descer numa tela negra.

Esse  loop digital, essa gravação interminável que espera um desastre é parte de nossa expectativa finita. Michel Montaigne escreveu: 'preparamo-nos contra os preparativos da morte'. Ele provavelmente não estava a pensar num jumbo quando ele escreveu na Renascença, mas podemos estender os significados, esperamos, sem nos sentirmos tão ambiciosos.  Não temos medo da morte; temos medo de sua antecipação.

Quando tocamos com I am the World Trade Center e Smokey Hormel em 2002, um jovem rapaz da primeira banda nos perguntou (antes que ele tivesse ouvido nossa música) se nós usávamos um monte de loops de fitas e amostras, como o nome da banda implica. A resposta é simples: não. Mas nossas apresentações usualmente duram cerca de meia hora, senão menos,  e isso, é claro, é a mesma duração do CVR e tocamos as mesmas músicas, com alguma variação, de show para show e de set para set, então talvez nós executemos algum tipo de loop sem fim ou amostra de música que o público raramente nota. A música pop, finalmente, não é nada senão a repetição de um desastre esperado. A repetição é agradável e profunda, tal como uma criança de três anos que quer ler o mesmo livro de Maurice Sendak uma e outra e outra vez, ritualizando a virada de cada página, a antecipação das coisas selvagens à espreita nas folhas de papel, murmurando as palavras junto com um dos pais que se sente agoniado por ter de ler este maldito livro mais uma vez, apenas para valorizar e preservar aquela surrada versão da criança quando ela tiver crescido e se mover para repetições mais ricas que não incluem os pais.

Então, como tudo na vida, 20 Minute Loop se refere à amável repetição da vida a qual jamais escapará da expectativa de sua morte. Você não está feliz por ter perguntado?


terça-feira, 25 de setembro de 2007

sorver

tão sem jeito
esse coração teu,

pouco comedido, precipitado
afeito apenas àquela

enxerga nela a margarida
fosse naquela flor, dantes amarela, vibrante

nas tuas madeixas, no teu olhar de menina
no refletir insinuante, te escapo aos braços

não chegas às notas altas,
às falas articuladas, ponderadas, cristalinas

mesmo a dizer não, tu percorre-me os ouvidos
no telefone, no curto recado do telemóvel

nas tuas imagens
nas tuas composições

dizes ainda que falta muito
para que vá onde queres

fica cá, ambivalente
a percorrer-me a memória

apenas um pouco de ti
teu calor, pudores

anseios teus
similares aos que construí

aqui, sem ajuda
para mim, apenas

sem nunca consultar a ti
a quem quer seja

vens, agora
não te vá, é tarde

esperançoso que queiras
dá me convites, vou

ora finjo esquecer
teimosamente.

mas estou cá,
com esses olhos de cão

seguindo, aproximando
rosnando e mordendo

o tempo todo
cenho franzido, rude, ressentido da tua falta

grosseiro de não chegar a ti
arrogante, farta-me de tanto saber

que desejo teu afagos
e minhas mãos, quentes de ti

das mechas até envolver-te
até tomar teu corpo, com força

a roubar teus lábios
sorvê-los.

escrevinhar

"Sou capaz de escrevinhar insolentes missivas e azucrinar o mais pacato dos cristãos, seja ele juiz de direito ou um bárbaro teutão."

o mau

Clint Eastwood

domingo, 23 de setembro de 2007

Teus timbres

Nouvelle Vague
20 Minute Loop
Delgados
Não bastam.
Quero aí ouvir a tua voz,
a narrar-me tuas histórias
a cantar-me tuas notas
a sussurrar nos meus ouvidos

Teus Timbres

Bildungsroman

Excertos do Jovem Törless de Robert Musil.

"...
— Sim, uns trechos novos de trigonometria, mas você vai acertar tudo, não há novidade.
— O que mais?
— Religião.
— Religião? Ah, é. Vamos ver... Acho que, quando estou animado, posso provar tão bem que dois mais dois são cinco quanto que só pode existir um Deus..." p. 28

"...
Törless entregou-se inteiramente à fluência deles, pois sua condição espiritual era mais ou menos a seguinte: em sua idade lia-se no ginásio Goethe, Schiller, Shakespeare, talvez até os modernos. Coisas que, semidigeridas, mais tarde são exteriorizadas por escrito, e surgem tragédias romanas ou poemas sentimentais, páginas inteiras de pontuação semelhante a uma renda delicada: coisas em si tolas, conquanto inestimáveis para que se tenha um desenvolvimento seguro. Pois essas associações, vindas de fora, essas emoções tomadas de empréstimo, ajudam os jovens a caminhar sobre um solo espiritual excessivamente macio desses anos, nos quais eles têm necessidade de descobrir o sentido de si próprios, ainda que imaturos demais para fazerem qualquer sentido. Não importa que alguns guardem vestígios disso e outros não; mais tarde todos aprenderão a conviver consigo próprios. O perigo reside apenas na idade de transição. Se nessa fase pudéssemos fazer o adolescente ver o quanto é ridículo, o chão abriria sob seus pés e ele despencaria como um sonâmbulo que, subitamente despertado, não vê senão um vácuo à sua frente." p. 14-15

"...
Mas já no dia seguinte teve uma grande decepção. Pela manhã, comprara o volume de Kant que vira na mesa do professor, e no primeiro intervalo pôs-se a ler. Mas com tantos parênteses e notas de rodapé, não entendia nada; e quando seguia escrupulosamente as linhas com os olhos, era como se uma velha mão descarnada fizesse seu cérebro girar em espirais, arrancando-o de dentro do crânio.

Quando, meia hora depois, parou exausto, havia gotas de suor em sua testa — e chegara apenas à segunda pagina.

Apertou os dentes e leu mais uma página até o intervalo acabar.

À noite, já não desejava nem tocar no livro. Medo? Repulsa? Não sabia. Só uma coisa o atormentava, nítida: era que o professor, pessoa de aparência tão apagada, tivesse aquele livro bem exposto no quarto, como se ele fosse uma diversão cotidiana." p. 108

Extraídos de O Jovem Törless. MUSIL, Robert. Ed. Nova Fronteira. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro, 1981.

Robert Musil, 1880-1942.


Sobre o escritor:
pt.wikipedia.org & en.wikipedia.org

Gabriela

Gabriela

Gabriela era dessas gajas barulhentas.
A reclamar a cada subida,
balouçando-se e rangendo por todos os recônditos
Hoje, carcomida pelo tempo
Pelas moçoilas mais novas
Amélias, Vitórias
Tomaram seu lugar
E elas mesmas andam já decrépitas
E ninguém sente saudades de ti,
Pois tu, Gabriela, foste sempre muito dura.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Dentista

Mote fresquinho.

Não mencionei, mas tenho certo pavor desses gajos que nos metem alicates, seringas e tudo mais na boca - e ainda dizem que é para o nosso bem. Certamente o é, mas sempre me sinto num açougue quando estou num consultório, com a desconfortável e real sensação de que a carne a ser trinchada ali, naquela cadeira, sou eu; não é encorajador, eu sei, nunca me recuso a ir ao consultório. Mas não gosto.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

A guerra, II

— Podia muito bem ter ido procurar-me — disse Lisa Ebner, olhando em volta com uma expressão de descontentamento. — Ou julgará, por acaso, que me pode dar ordens como aos seus soldados?

— Não dou ordens aos soldados — respondeu Asch, em tom pouco amável. — Deixo isso a outros.

— Isso é com o capitão Witterer?

— Pergunte-lhe se ele se sente atingido. Mas isso fica para mais tarde. Por agora, sente-se.

Lisa Ebner olhava para Asch como se este fosse um animal curioso e contagioso ainda por cima. Depois contemplou de novo o que a rodeava. Fungou, outra vez, descontente, franzindo seu gentil narizinho.

Encontravam-se na sala principal da messe dos soldados, na etapa. Assemelhava-se a ela até certo ponto a uma sala de espera, muito arruinada, de 3ª classe, numa guarnição longínqua. Só faltavam ali os horários dos comboios. Em compensação havia ali alguns cartazes publicitários, todos ornados, é certo, de frases patrióticas. O Führer também não fora esquecido.

Apenas alguns soldados não estavam presentes, pois a hora das verdadeiras distracções não chegara ainda. A ração de vinho baptizado, muito apreciada e que aumentava a força combativa, nuca era distribuída antes do cair da noite. Os iniciados renunciavam todos, magnanimamente, ao chá da tarde ou à sopa de pão. Os que se encontravam ali eram, portanto, na sua maior parte, extraviados.

A um canto berrava sem parar um alto-falante. Ninguém os ouvia. Os mugidos contínuos da rádio eram tão indispensáveis a esta guerra como o ar para respirar.

Lisa Ebner sentou-se num banco, em frente ao sargento Asch. Automaticamente, sacudiu o vestido, pois tinha a algum tanto penosa impressão de saber que todos os seus movimentos eram observados. Esforçava-se por olhar Asch de cima, o que não parecia incomodá-lo muito.

— Eu não sou sua empregada — disse ela.

— Ainda ninguém o disse.

— Sendo assim queira tratar-me de outra maneira.

— Como? Como a um ovo?

— O senhor é impossível! — exclamou Lisa, lançando-lhe olhares indignados. — É, nem mais, nem menos, um insolente. Outros sentir-se-iam felizes por se encontrarem aqui sentados, comigo. Mas o senhor é ainda capaz de acreditar que me está a fazer um favor. Que está a pensar, afinal de contas?

— Não me faça essa pergunta.

— Será por acaso uma táctica sua?

— Minha querida menina Lisa Ebner — respondeu Asch, mirando as mãos —, eu sou casado.

— Já mo disse. Mas pode mudar de disco. Ou será também uma táctica?

— Como mulher — respondeu Asch, inclinando-se sobre a mesa e olhando-a fixamente — não me interessa nada. Nem tanto como isso. Para mim é unicamente uma pessoa com quem trato dum assunto, tal qual como com o representante do depósito de abastecimento ou do armazém de caixões. Tenciono discutir consigo uma questão de serviço e é tudo. Para os assuntos particulares não tenho competência. Não sou eu quem a tem.

— Essa graça é outra vez com o capitão Witterer? Asch abanou lentamente a cabeça, insinuando assim que a considerava "dura da cachimónia".

— Mandei um dos meus camaradas ao alojamento do seu grupo — disse ele — para que me enviassem aqui alguém em condições de tratar comigo. Quem? Estou-me nas tintas quanto a isso. Não quis ir para sua casa com receio de perturbar qualquer idílio. Supus que fosse o vosso parceiro macho, o ilusionista, quem aparecesse. Na verdade, não tinha imaginado que viria você em pessoa. De resto, é-me indiferente.

— Ora vejam!

— Perfeitamente indiferente.

— Está bem — disse Lisa Ebner, procurando tomar uma decisão. — Também não peço outra coisa. Seja como for. O nosso grupo dividiu o trabalho de organização. Sou eu quem deve preparar o espetáculo extraordinário para os senhores. Portanto, quer lhe agrade, quer não tem de contentar-se comigo.

— Contento-me consigo, como está vendo —, respondeu Asch, fleumaticamente.

Depois procurou com o olhar a criada Betty. Ela aproximou-se, sem se apressar muito. Asch olhou-a com amabilidade.

— É com certeza a menina Betty? — perguntou, com crescente cordialidade essa mulher pesada e maternal.

— Como sabe, sargento?

— De acordo com a descrição que me fizeram, não pode deixar de ser a senhora.

— Fizeram uma descrição de mim? — perguntou ela, assustada.

— Cumprimento-a da parte do Subalterno Soëft. Estou na mesma bateria.

— Então são assim os amigos desse pulha desse vendedor ambulante? Imaginava-os doutra maneira. Você tem um ar mais ou menos normal.

— Por vezes a gente engana-se — disse Lisa, num tom convicto.

— Também me enganaria — declarou a criada, fazendo um sinal de assentimento a Lisa. — Mas, uma vez que está aqui, não quero causar uma decepção a Soëft. Então que quer beber?

— Se tenho o direito de escolher — disse Herbert, de bom humor — queria uma cerveja. Mas daquela que faz "pschi!". Há meses que a não bebo.

— Terá o que quer — disse Betty num tom ao mesmo tempo brusco e cordial. — E a menina?

— Um café!?

— Porque não? Tê-lo-á. O gângster do Soëft se arranjará para substituir.

A criada afastou-se.

— Faz-me lembrar a minha sogra — disse Asch.

— Também isso é ilusão de óptica — disse Lisa Ebner, agastada. — As mulheres, perto da frente, nunca são mais que ersatz. Fazemo-vos sempre lembrar outra mulher qualquer. Quando somos novas, a vossa noiva. quando somos velhas, as vossas mamãs. E, pouco a pouco, isso deixa de ter graça.

Você dá-me a impressão de ter coleccionado um bom número de experiências. Há quanto tempo anda metida nesta história?

— Na frente? Estou aqui pela primeira vez.

— Não está na frente, mas sim atrás da frente — corrigiu gentilmente Asch. E, antes disto, onde exerceu o seu talento?

— Nos hospitais.

— Isso estava bem. Estaria mais no seu lugar. Mas não foi lá com certeza que encontrou o seu capitão Witterer!...

— Ele não é meu capitão. Não lho disse já? Conheço-o, e nada mais.

— Conhece mais alguns da mesma maneira?

— Ainda que isto o inquiete, conheço uma quantidade deles. Por exemplo o comandante Baer. E também o capitão Runge e o comandante von Falckenstein. E ainda...

— Já me chega — interrompeu Asch num tom desagradável.

— Nomes assim podia citar-lhe dúzias deles.

— Elabore uma lista, mande tirar cópias ao duplicador e distribua-as por todos aqueles a quem interessar, como, digamos assim, certificado de capacidade, como certificado de rendimentos ou outros deste gênero.

Lisa Ebner olhava-o com os olhos dilatados, muito aberto. Olhos sombrios e tristes. Eram olhos de criança, tal como Asch pôde verificar. Que lentamente, muito lentamente, se enchiam de lágrimas.

— Porque me diz essas coisas? — perguntou ela, em voz baixa, como se sentisse desamparada. — Por quem me toma? Porque supõe que eu... que eu...

E Lisa começou a chorar. Grossas lágrimas rolavam-lhe pelo rosto e caíam na mesa mal limpa. Ela chorava sem ruído e seus ombros mantinham-se imóveis.

— Não chore, vamos — disse Asch, muito aborrecido. — Porque está a chorar?

Lisa continuava a chorar. Sem ruído. Sem se mover.

— Vamos domine-se. Meu Deus, se toda a gente aqui quisesse pôr-se a chorar!...

Betty aproximou-se lentamente da mesa. Depôs sobre ela o café, que desprendia um aroma intenso, e colocou diante de Asch uma caneca de cerveja. Depois examinou a rapariga e o sargento com um descontentamento crescente.

— É, realmente és um amigo íntimo desse patife do Soëft — disse por fim, com convicção. — Vê-se. Mas não se rale menina. Não é com certeza o único homem que existe neste sítio.

— Era só o que faltava, que começasse também a chorar, menina Betty.

— Pode esperar por isso enquanto a Guerra durar, rapaz. — E depois de ter assim falado a criada afastou-se, resmungando.

A torrente de lágrimas de Lisa não se esgotara ainda. Asch não sabia já o que fazer. Instintivamente puxou pelo lenço, mas teve presença de espírito bastante para não o oferecer à rapariga, pois estava muito longe de se encontrar limpo..

— Alcame-se, vamos. Não quis ofendê-la. Creia que não quis.

— Quis, sim — disse Lisa, fogosamente.

— Pois bem. Se faz questão disso, desculpe. Peço-lhe que me desculpe. Não tive intenção de ofendê-la. Desculpe-me. Peço-lhe.

Lisa não respondeu. Mas as lágrimas já não corriam. Acumulavam-se nos grandes olhos que brilhavam agora docemente.

— Sabe, menina Lisa Ebner — acrescentou Asch, vivamente —, nós aqui não estamos aquilo que se pode chamar estragados com mimo. E esquecemos muitas coisas. Conhecemos apenas os camaradas, e, a eles, apenas para comer e morrer.

— Não tenho nada que ver com isso.

Lisa fez desaparecer com as costas das mãos os sinais das lágrimas. A sua pele, verificou Asch com prazer, não tinha qualquer vestígio de pó de arroz. Brilhava um pouco vermelha agora, mas era lisa e saudável.

Lisa tirou um espelho da malinha. O que nele viu pareceu tranqüilizá-la. Soprou duas vezes para cima, em direção ao seu gracioso nariz. Depois tentou outra vez olhar Asch com uma expressão provocadora.

Não deixe arrefecer o café — disse ele.

Lisa, obediente, bebeu em movimentos um pouco bruscos. Era uma rapariga encantadora. Muito nova e quase ingénua ainda.

De súbito, Asch sentiu um vivo desejo de que ela se mantivesse tal como era agora. Foi nisso que pensou enquanto bebia uma boa golada de cerveja. E este pensamento não o deixou mais.

— Deve tentar, de uma vez para sempre, saber o que nós pensamos — disse depois. — Vejamos, por exemplo, o eterno assunto número um: as mulheres. Muito bons pensamentos, expressos em milhões de cartas. Mas não há só esses bons pensamentos. Há também as ilustrações dos jornais militares, os magazines, as canções equívocas da rádio para os soldados. E depois as conversas das retretes e das noites e os devaneios provocados pelo álcool. De repente, eis que aparecem verdadeiras mulheres cruzando nosso caminho. Elas misturam-se connosco: mais ou menos uma para cem mil. De vez em quando passa-se qualquer coisa, mas não quererá negar com certeza! E a ocasião favorável só existe ainda para aqueles que ainda têm um um quarto e uma cama. Mas a coisa sabe-se depressa. E, para muitos, elas são, por princípio, prostitutas para oficiais. E o desejo sexual é, como o desejo de comer, particularmente desenvolvido aqui. Conte com isso. Nada se pode fazer em contrário.

— Com indivíduos que pensam dessa maneira, não queremos quaisquer relações.

— Mas você não pode escolher os que a olham.

— Felizmente ainda há homens em que se pode confiar.

— Não me sinto ofendido por verificar que não me inclui no número desses — disse Asch, indiferente. Depois perguntou: e o Capitão Witterer? Pode confiar nele?

— Conheci-o na Alemanha. Foi muito delicado para comigo, muito bem educado. E como ele tinha altas relações — o comandante Baer é seu amigo íntimo — pedi-lhe que me ajudasse a obter um contrato para espetáculos na frente.

— Porquê? Os contratos desse gênero a interessam do ponto de vista pecuniário?


Ela aprox p.157

A guerra, I

Tiger I

Nessa mesma noite chegou à estação de correio da pequena cidade um telegrama urgente, concebido nos seguintes termos: "Subalterno Vierbein Stop Interromper imediatamente a licença Stop Pôr-se imediatamente em marcha Stop Witterer, capitão, chefe de bateria Stop.

O capitão Witterer, já muito tocado, estava sentado em frente do comandante da infantaria. O estômago deste parecia um buraco imenso que não se conseguia encher. Bebia, bebia e era como se não produzisse qualquer efeito.

— Durmo muito pouco — disse o comandante.

— Os soldados não precisam dormir muito — disse Witterer, que morria de fadiga. E Krause, sentado ao lado dele, acenou a cabeça a custo.

— Merda! — exclamou o comandante. — Se durmo pouco, é porque não posso dormir mais. Quem é que poderia dormir nesta porcaria em que estamos? Mas um destes dias vou-me abaixo — estarei maduro para o manicómio. Regozijo-me só de pensar nisso.

— Na noite em que isto vai recomeçar — disse Witterer, procurando sempre desembaraçar-se do seu convidado. — Nessa altura teremos necessidade de todas as nossas energias.

— Na noite que vem recuaremos em ordem, ao menos uma vez. Se o russo não nos perseguir, será um passeio.

— Receia complicações, meu comandante? — perguntou Witterer, cuja atenção despertara subitamente. Krause, como a sombra de seu chefe, esticou a orelha.

— A guerra é feita só de complicações — disse o comandante, indiferente.

— Em todo o caso, os nossos chefes saberão...

— Merda! — disse o da infantaria, convicto, engolindo um copo cheio e aguardente. — Fazer a guerra sobre mapas é coisa completamente diferente de estar na lama. O sangue não é lápis encarnado. Aqui rebenta-se; lá apaga-se com a borracha. Um vomita na neve os pulmões estoirados; o outro vomita porque bebeu vinho tinto em demasia.

— E se o Russo nos perseguir realmente?

— Neste caso divertir-se-á outra vez a disparar tiros de canhão, meu amiguinho.

[Fragmento: Kirst, Hans Hellmut. 08/15, a guerra. Publicações Europa-América, Lisboa, pp. 302-3.]

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Mal dizer

Diz um velho amigo sobre si mesmo:
"Eu sou um roceiro, um legítimo jagunço do interior de Minas: matuto, quadrado e bruto; desses que odeia gente com alegria de viver. Elas fedem.

Se você conversou comigo algumas vezes e só por isso acha que eu sou seu amigo: eu não sou. Se você nem conversou comigo e mesmo assim acha que eu sou seu amigo: eu não sou. Me deixe em paz. Não gosto de gente. Amigo demais sobra."

Aprecio muito dizeres rudes e ranzinzas. Isso sim é que é uma bela forma de prosa. Aguardem.

Pequenas notas espirais

Algumas ligações
  1. Dante Worlds da Universidade do Texas em Austin, uma coisa meio bizarra feita sobre o trabalho de Dante, é bonito e interessante, coisa bem feita.
  2. Projetc Gutenberg, livros eletrônicos gratuitos.
  3. Bibliomania, mais livros gratuitos, textos em Html, fáceis de serem carregados.
  4. Short Stories, bastante interessante. Variados gêneros, até alguns pra lá de esquisitos, como hiperficção, baseado em vários tipos de mídia e recursos gráficos. Espero que não chamem esse tipo de tralha de 'literatura'. Dá pra passar um bom tempo por lá.
Algumas espirais




sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Torso nu

e membros retorcidos
neste sertão
das gentes esquecidas, ingénuas, simples
sertão isolado, provinciano, pequeno
sertão das letras mal encadeadas
dos maus poemas, das más palavras
de sonolências e outro tanto de privação
de tanto trabalho, de tanta dor
dia após outro dia.


arvore

Dentro da casa

SofáO interior de sua casa era comum, ordinário sim, independentemente do que o Menino pensasse, sem bem que ele não perdia tempo, em seus pensamentos, com o lugar onde comia, dormia e, com certa frequência, ficava de castigo e apanhava. Isso acontecia não porque seus pais fossem maus para com ele, não. O Menino era travesso sim, teimoso sempre, apesar de se achar sempre injustiçado. Ademais ficava muito tempo fora de casa, no quintal, o que lhe dava mais possibilidades para suas brincadeiras — em broncas acabavam algumas. O interior era simples como dissemos, a cozinha tinha um piso de cerâmica, disposta da mesma forma simétrica que a cerâmica fosca do lado de fora, era branca, rajada de rosa ou vermelho muito claro, acabando por dar uma impressão de ser rosa. A porta da entrada, assim como as duas outras portas da casa, eram escuras, de madeira, pintadas à óleo, azul escuro na duas que se podia abrir e fechar, pintura bem gasta, soltando-se em muitas partes, mostrando cores anteriores, um azul claro pálido, rosa ou violeta desbotado, desagradável de se ver ou um marrom escuro, não menos desagradável que a cor da terceira porta, a da sala que nunca se abria. Decrépitas. Os móveis da cozinha eram todos azuis, azul claro, os da sala simples demais, sala do piso de taco marrom escuro como, descolando em muitas partes, com muitos tacos soltos, que quanto retirados exalavam cheiro ruim de madeira velha, sem cera, abrasivos pela falta de trato — tropeçar neles com os pés metidos em chinelos de dedo era frequente e doloroso. Na sala havia cortinas grandes e amplas — bonitas sim, escondiam a porta que nunca se abria e a janela —, uma tevê, colocada numa estante velha, poltronas gastas de napa marrom, com alguns rasgos, mas sem tecido para esconder a falta de meios, mas isso não por convicção moral ou algo do tipo, mas realmente por falta cuidado ou indiferença. No quarto duas camas, uma de casal, da mãe, uma de solteiro, um cesto abarrotado de coisas, guarda-roupas creme, novamente o piso de tacos, sem rodapé, tanto na sala como no quarto.

domingo, 19 de agosto de 2007

Sim

é alarde falso
falseado pelo contraste
de cores berrantes
de variados tamanhos e formas

as cores
sua expressividade
seus tamanhos
os sentimentos desencadeados

sempre pensados
nunca impressos.

Escrita

Pois o texto jamais ganhará outra dimensão senão a da palavra escrita. Cores ou tamanhos o tornarão no máximo mais desagradável ou mais fácil de ser lido. Pelos que têm dificuldade em enxergar, as letras grandes serão mais facilmente lidas, por mais que se apresentem de forma deselegante. As letras coloridas, em fundo de baixo contraste, marcam apenas a obtusidade do autor: se quer um texto intrincado, que o faça pelo próprio texto e não lhe colocando obstáculos físicos. Se o autor não quer que sejam lidos, apenas não publique.

A internet está cheia de pseudo-autores dados a escrever subliteratura. Portam-se, ingenuamente, como se estivessem a fazer algo inteligente quando estão fazer experimentos literários tresloucados. Isto não porque sejam, sempre, estúpidos, mas sim porque não têm critérios que não os que se lhe apresentam sobejamente diante do nariz.

Os beletristas de outrora expandiam a mente com Virgílio, com a literatura clássica e a fina flor do que havia em sua época. No período hodierno expandem a mente com entorpecentes. E, por aí, se vê uma bela colecção de nulidades.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Till the end of time

E insisto nesse impertinente modo agir. Agora mais outra.

Till the end of time, também Devotchka.

They’re just words, they ain’t worth nothing
Cloud your head and push your buttons
And watch how they just disappear
When we’re far away from here

And everybody knows where this is heading
Forgive me for forgetting
Our hearts irrevocably combined
Star-crossed souls slow dancing
Retreating and advancing
Across the sky until the end of time

Oh who put all those cares inside your head
You can’t live your life on your deathbed
And it’s been such a lovely day
Let’s not let it end this way

And everybody knows where this is heading
Forgive me for forgetting
Our hearts irrevocably combined
Star-crossed souls slow dancing
Retreating and advancing
Across the sky until the end of time

Like sisters and brothers we lean on each other
Like sweethearts carved on a headstone
Oh why even bother, it’ll be here tomorrow
It’s not worth it sleeping alone

And look at you and me still here together
There is no one knows you better
And we’ve come such a long long way
Let’s put it off for one more day

And everybody knows where this is heading
Forgive me for forgetting
Our hearts irrevocably combined
Star-crossed souls slow dancing
Retreating and advancing
Across the sky until the end of time

How it ends

Não gosto muito de reproduzir conteúdo alheio. Entretanto, como não produzo nada que preste, assim procedo.

How it ends. Devotchka.
Hold your grandmother's Bible to your breast.
Gonna put it to the test.
You want it to be blessed.
And in your heart,
You know it to be true,
You know what you gotta do.
They all depend on you.
And you already know.
Yeah, you already know how this will end.

There is no escape,
From the slave-catchers' songs.
For all of the loved ones gone.
Forever's not so long.
And in your soul,
They poked a million holes.
But you never lettem show.
C'mon it's time to go.

And
You
Already know.
Yeah, you already know
How this will end.

Now you've seen his face.
And you know that there's a place,
In the sun,
For all that you've done,
For you and your children.
No longer shall you need.
You always wanted to believe,
Just ask and you'll receive,
Beyond your wildest dreams.

And
You
Already know.
Yeah, you already know
How this will end.

You already know (You already know)
You already know (you already know)
You already love will end.

terça-feira, 10 de julho de 2007

ouvir

Braços doloridos, imprestáveis.
Barba rala e feia, por fazer.
Sem vaidade.
Esperando por
uma voz não que não ouviu.

De um rosto estático em vermelho
que se faz interessante

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Toada de Portalegre, José Régio

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e Amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
Á qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e consola
Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre; cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do tal suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, vácuos,
A mim que tanto esperava
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegara!

E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

Cântigo Negro, José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Estar

Tão só.
Ouço o rumor do ventilador,
o disco rígido roncando,
abafado.
A tela oscilando.
Todos os dias.
sem alma por perto
horas a fio
garrafa térmica
café, as mãos tremem
sem doçura.
Barulhos na rua, pessoas vivem
locomovem-se, trabalham, ruidosas.
Todos os dias.
Tão só.

Às vezes tomado de pânico
de vozes ausentes.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Doce lar

Aqui comunica-se por gritos
Seja com um bebê ou com o mais idoso
O que vale é a quantidade de decibéis
É de se pensar que todos gostam de exibir
Por gritos e berros, lancinantes e bárbaros,
Suas possantes vozes
Surdos há em toda parte
E aqui em profusão.
Aqueles que ouvem bem, logo ensurdecem
E como loucos passam a gritar.