terça-feira, 28 de agosto de 2007

A guerra, II

— Podia muito bem ter ido procurar-me — disse Lisa Ebner, olhando em volta com uma expressão de descontentamento. — Ou julgará, por acaso, que me pode dar ordens como aos seus soldados?

— Não dou ordens aos soldados — respondeu Asch, em tom pouco amável. — Deixo isso a outros.

— Isso é com o capitão Witterer?

— Pergunte-lhe se ele se sente atingido. Mas isso fica para mais tarde. Por agora, sente-se.

Lisa Ebner olhava para Asch como se este fosse um animal curioso e contagioso ainda por cima. Depois contemplou de novo o que a rodeava. Fungou, outra vez, descontente, franzindo seu gentil narizinho.

Encontravam-se na sala principal da messe dos soldados, na etapa. Assemelhava-se a ela até certo ponto a uma sala de espera, muito arruinada, de 3ª classe, numa guarnição longínqua. Só faltavam ali os horários dos comboios. Em compensação havia ali alguns cartazes publicitários, todos ornados, é certo, de frases patrióticas. O Führer também não fora esquecido.

Apenas alguns soldados não estavam presentes, pois a hora das verdadeiras distracções não chegara ainda. A ração de vinho baptizado, muito apreciada e que aumentava a força combativa, nuca era distribuída antes do cair da noite. Os iniciados renunciavam todos, magnanimamente, ao chá da tarde ou à sopa de pão. Os que se encontravam ali eram, portanto, na sua maior parte, extraviados.

A um canto berrava sem parar um alto-falante. Ninguém os ouvia. Os mugidos contínuos da rádio eram tão indispensáveis a esta guerra como o ar para respirar.

Lisa Ebner sentou-se num banco, em frente ao sargento Asch. Automaticamente, sacudiu o vestido, pois tinha a algum tanto penosa impressão de saber que todos os seus movimentos eram observados. Esforçava-se por olhar Asch de cima, o que não parecia incomodá-lo muito.

— Eu não sou sua empregada — disse ela.

— Ainda ninguém o disse.

— Sendo assim queira tratar-me de outra maneira.

— Como? Como a um ovo?

— O senhor é impossível! — exclamou Lisa, lançando-lhe olhares indignados. — É, nem mais, nem menos, um insolente. Outros sentir-se-iam felizes por se encontrarem aqui sentados, comigo. Mas o senhor é ainda capaz de acreditar que me está a fazer um favor. Que está a pensar, afinal de contas?

— Não me faça essa pergunta.

— Será por acaso uma táctica sua?

— Minha querida menina Lisa Ebner — respondeu Asch, mirando as mãos —, eu sou casado.

— Já mo disse. Mas pode mudar de disco. Ou será também uma táctica?

— Como mulher — respondeu Asch, inclinando-se sobre a mesa e olhando-a fixamente — não me interessa nada. Nem tanto como isso. Para mim é unicamente uma pessoa com quem trato dum assunto, tal qual como com o representante do depósito de abastecimento ou do armazém de caixões. Tenciono discutir consigo uma questão de serviço e é tudo. Para os assuntos particulares não tenho competência. Não sou eu quem a tem.

— Essa graça é outra vez com o capitão Witterer? Asch abanou lentamente a cabeça, insinuando assim que a considerava "dura da cachimónia".

— Mandei um dos meus camaradas ao alojamento do seu grupo — disse ele — para que me enviassem aqui alguém em condições de tratar comigo. Quem? Estou-me nas tintas quanto a isso. Não quis ir para sua casa com receio de perturbar qualquer idílio. Supus que fosse o vosso parceiro macho, o ilusionista, quem aparecesse. Na verdade, não tinha imaginado que viria você em pessoa. De resto, é-me indiferente.

— Ora vejam!

— Perfeitamente indiferente.

— Está bem — disse Lisa Ebner, procurando tomar uma decisão. — Também não peço outra coisa. Seja como for. O nosso grupo dividiu o trabalho de organização. Sou eu quem deve preparar o espetáculo extraordinário para os senhores. Portanto, quer lhe agrade, quer não tem de contentar-se comigo.

— Contento-me consigo, como está vendo —, respondeu Asch, fleumaticamente.

Depois procurou com o olhar a criada Betty. Ela aproximou-se, sem se apressar muito. Asch olhou-a com amabilidade.

— É com certeza a menina Betty? — perguntou, com crescente cordialidade essa mulher pesada e maternal.

— Como sabe, sargento?

— De acordo com a descrição que me fizeram, não pode deixar de ser a senhora.

— Fizeram uma descrição de mim? — perguntou ela, assustada.

— Cumprimento-a da parte do Subalterno Soëft. Estou na mesma bateria.

— Então são assim os amigos desse pulha desse vendedor ambulante? Imaginava-os doutra maneira. Você tem um ar mais ou menos normal.

— Por vezes a gente engana-se — disse Lisa, num tom convicto.

— Também me enganaria — declarou a criada, fazendo um sinal de assentimento a Lisa. — Mas, uma vez que está aqui, não quero causar uma decepção a Soëft. Então que quer beber?

— Se tenho o direito de escolher — disse Herbert, de bom humor — queria uma cerveja. Mas daquela que faz "pschi!". Há meses que a não bebo.

— Terá o que quer — disse Betty num tom ao mesmo tempo brusco e cordial. — E a menina?

— Um café!?

— Porque não? Tê-lo-á. O gângster do Soëft se arranjará para substituir.

A criada afastou-se.

— Faz-me lembrar a minha sogra — disse Asch.

— Também isso é ilusão de óptica — disse Lisa Ebner, agastada. — As mulheres, perto da frente, nunca são mais que ersatz. Fazemo-vos sempre lembrar outra mulher qualquer. Quando somos novas, a vossa noiva. quando somos velhas, as vossas mamãs. E, pouco a pouco, isso deixa de ter graça.

Você dá-me a impressão de ter coleccionado um bom número de experiências. Há quanto tempo anda metida nesta história?

— Na frente? Estou aqui pela primeira vez.

— Não está na frente, mas sim atrás da frente — corrigiu gentilmente Asch. E, antes disto, onde exerceu o seu talento?

— Nos hospitais.

— Isso estava bem. Estaria mais no seu lugar. Mas não foi lá com certeza que encontrou o seu capitão Witterer!...

— Ele não é meu capitão. Não lho disse já? Conheço-o, e nada mais.

— Conhece mais alguns da mesma maneira?

— Ainda que isto o inquiete, conheço uma quantidade deles. Por exemplo o comandante Baer. E também o capitão Runge e o comandante von Falckenstein. E ainda...

— Já me chega — interrompeu Asch num tom desagradável.

— Nomes assim podia citar-lhe dúzias deles.

— Elabore uma lista, mande tirar cópias ao duplicador e distribua-as por todos aqueles a quem interessar, como, digamos assim, certificado de capacidade, como certificado de rendimentos ou outros deste gênero.

Lisa Ebner olhava-o com os olhos dilatados, muito aberto. Olhos sombrios e tristes. Eram olhos de criança, tal como Asch pôde verificar. Que lentamente, muito lentamente, se enchiam de lágrimas.

— Porque me diz essas coisas? — perguntou ela, em voz baixa, como se sentisse desamparada. — Por quem me toma? Porque supõe que eu... que eu...

E Lisa começou a chorar. Grossas lágrimas rolavam-lhe pelo rosto e caíam na mesa mal limpa. Ela chorava sem ruído e seus ombros mantinham-se imóveis.

— Não chore, vamos — disse Asch, muito aborrecido. — Porque está a chorar?

Lisa continuava a chorar. Sem ruído. Sem se mover.

— Vamos domine-se. Meu Deus, se toda a gente aqui quisesse pôr-se a chorar!...

Betty aproximou-se lentamente da mesa. Depôs sobre ela o café, que desprendia um aroma intenso, e colocou diante de Asch uma caneca de cerveja. Depois examinou a rapariga e o sargento com um descontentamento crescente.

— É, realmente és um amigo íntimo desse patife do Soëft — disse por fim, com convicção. — Vê-se. Mas não se rale menina. Não é com certeza o único homem que existe neste sítio.

— Era só o que faltava, que começasse também a chorar, menina Betty.

— Pode esperar por isso enquanto a Guerra durar, rapaz. — E depois de ter assim falado a criada afastou-se, resmungando.

A torrente de lágrimas de Lisa não se esgotara ainda. Asch não sabia já o que fazer. Instintivamente puxou pelo lenço, mas teve presença de espírito bastante para não o oferecer à rapariga, pois estava muito longe de se encontrar limpo..

— Alcame-se, vamos. Não quis ofendê-la. Creia que não quis.

— Quis, sim — disse Lisa, fogosamente.

— Pois bem. Se faz questão disso, desculpe. Peço-lhe que me desculpe. Não tive intenção de ofendê-la. Desculpe-me. Peço-lhe.

Lisa não respondeu. Mas as lágrimas já não corriam. Acumulavam-se nos grandes olhos que brilhavam agora docemente.

— Sabe, menina Lisa Ebner — acrescentou Asch, vivamente —, nós aqui não estamos aquilo que se pode chamar estragados com mimo. E esquecemos muitas coisas. Conhecemos apenas os camaradas, e, a eles, apenas para comer e morrer.

— Não tenho nada que ver com isso.

Lisa fez desaparecer com as costas das mãos os sinais das lágrimas. A sua pele, verificou Asch com prazer, não tinha qualquer vestígio de pó de arroz. Brilhava um pouco vermelha agora, mas era lisa e saudável.

Lisa tirou um espelho da malinha. O que nele viu pareceu tranqüilizá-la. Soprou duas vezes para cima, em direção ao seu gracioso nariz. Depois tentou outra vez olhar Asch com uma expressão provocadora.

Não deixe arrefecer o café — disse ele.

Lisa, obediente, bebeu em movimentos um pouco bruscos. Era uma rapariga encantadora. Muito nova e quase ingénua ainda.

De súbito, Asch sentiu um vivo desejo de que ela se mantivesse tal como era agora. Foi nisso que pensou enquanto bebia uma boa golada de cerveja. E este pensamento não o deixou mais.

— Deve tentar, de uma vez para sempre, saber o que nós pensamos — disse depois. — Vejamos, por exemplo, o eterno assunto número um: as mulheres. Muito bons pensamentos, expressos em milhões de cartas. Mas não há só esses bons pensamentos. Há também as ilustrações dos jornais militares, os magazines, as canções equívocas da rádio para os soldados. E depois as conversas das retretes e das noites e os devaneios provocados pelo álcool. De repente, eis que aparecem verdadeiras mulheres cruzando nosso caminho. Elas misturam-se connosco: mais ou menos uma para cem mil. De vez em quando passa-se qualquer coisa, mas não quererá negar com certeza! E a ocasião favorável só existe ainda para aqueles que ainda têm um um quarto e uma cama. Mas a coisa sabe-se depressa. E, para muitos, elas são, por princípio, prostitutas para oficiais. E o desejo sexual é, como o desejo de comer, particularmente desenvolvido aqui. Conte com isso. Nada se pode fazer em contrário.

— Com indivíduos que pensam dessa maneira, não queremos quaisquer relações.

— Mas você não pode escolher os que a olham.

— Felizmente ainda há homens em que se pode confiar.

— Não me sinto ofendido por verificar que não me inclui no número desses — disse Asch, indiferente. Depois perguntou: e o Capitão Witterer? Pode confiar nele?

— Conheci-o na Alemanha. Foi muito delicado para comigo, muito bem educado. E como ele tinha altas relações — o comandante Baer é seu amigo íntimo — pedi-lhe que me ajudasse a obter um contrato para espetáculos na frente.

— Porquê? Os contratos desse gênero a interessam do ponto de vista pecuniário?


Ela aprox p.157

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