segunda-feira, 7 de março de 2011

escravatura e servidão na gênese literária

Eu não disse nada para comparar. Comparações são fáceis e inúteis, produzem apenas apreciações de clichê. Não chegam a penetrar no coração da criação pessoal; e justamente isto é minha mui modesta ambição. Para tentá-lo, vou escolher um processo estranho, estranho como o meu assunto. Vou construir uma teoria para apanhar minha vítima, vou construí-la de pedaços de outras criações, alheias, com as quais Graciliano Ramos não tem nada que ver, vou colher esses pedaços, entregando-me ao jogo da livre das associações. "Gastei meses construindo essa Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas que se confunde com ela". Vou construir o meu Graciliano Ramos.
"Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios  do copiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo Carlos Magno, sonhando..." Logo me lembro do pintor incomparável da vida estática, imóvel, inconsciente, nos "engenhos" escravocratas da Rússia tzarista, daquele Gontcharov de quem me lembrei quando li comparações do Brasil escravocrata com a Rússia servil. Os romances de Gontcharov pintam classicamente um mundo primitivo, amoral, "a-trabalhador", preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idílios de pura "art pour l'art"; são acusações terríveis contra o regime, contra o Estado russo, que quis movimentar esse mundo imóvel por pretensas reformas econômicas e sociais. O  primeiro romance de Gontcharov chama-se: Uma história simples; o último: A queda.
Otto Maria Carpeaux in Graciliano Ramos, Angústia, 25ª Ed., Record, São Paulo, 1982, p. 240-1.

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