domingo, 20 de fevereiro de 2011

O que participa ao gato

Em poucos minutos de forte chuva de verão a casa, nos fundos, ao fim de um corredor de cerca de trinta metros, abaixo mais de um metro e meio do nível da rua, alagava rapidamente. A rua estava tal uma corredeira, embora sem alagar porque seguia em leve declive, o qual se acentuava quanto mais se seguia adiante, até terminar numa baixada alagadiça. Os carros estacionados na rua faziam a água quebrar e avançar sobre as guias, daí para as calçadas e, por fim, para os quintais. O portão de entrada da casa, antecedido por alguns degraus ascendentes, converteu-se numa queda d’água, cujo caudal era deveras maior do que a casa podia beber pelos esgotos. Com a enchente a invadir-lha a casa, a mulher, impotente, se pôs a gritar; os filhos acudiram: tiraram o gradeado do encanamento na esperança de aumentar o escoamento sem se importarem se as escórias trazidas pela água entupir-lhe-iam os canos; ela, porém, continuava a represar; um dos filhos foi ao portão e pôs obstáculos ao avanço da corredeira. Surtiu efeito de pronto. O estrago estava feito, entretanto. A casa estava imersa por uma camada d’água que batia na metade das canelas. Todos os móveis molhados; igualmente pertences vários nas partes baixas das cômodas, guarda-roupas, sapateira; a despensa ficou repleta daquele fluido infecto castanho escuro repleto de baratas a boiar; os móveis, provavelmente, estariam todos perdidos.

E nessa chuva toda, com uma expressão preocupante, estava o gato a tocaiar o que se passava. Seu olhar demonstrava inquietação, o que evidenciava a percepção daquela tragédia comezinha, embora ele mostrasse normalmente uma expressão de afetada indiferença, prova do seu temperamento independente, caracteristicamente felino, poder-se-ia dizer. Em um dado momento, porém, aquela expressão alterou-se, ficou algo desesperada, com os olhos arregalados e pupilas imensamente dilatadas, pondo-se a miar estridentemente, como se sentisse dor, como se alguém lhe pisasse o rabo; mas não, ele miava e olhava para a mulher, e olhava em direção a um ponto qualquer, o qual a mulher demorou a localizar, afinal a situação era toda difícil, toda desesperadora e demover-se das próprias mazelas para se aperceber dos anseios dum gato, àquela hora, não seria algo imediato.

O gato estava a miar e movimentar-se, desceu à cama, no quarto já tomado pela água castanho-negra. Olhava em direção à porta, remexendo-se, retesando a musculatura, girando, miando, crispando-se, olhava para mulher, miava, olhava para objeto de atenção e novamente para mulher, atos repetidos várias vezes. Ela, depois do filho ter dito que a água já não mais invadia o quintal, atinou ao felpudo, e se deu conta de que ele olhava para sua vasilha de ração à deriva na água turva. Logo esboçou um sorriso ao inferir que o gato percebia o desastre, que o seu comedouro a flutuar lhe participava também como perda, pois não lhe era possível vencer a água para tê-lo.

O gato tornou mais leve a sua angústia; a água estava vencida, aparentava já ceder, com a casa dando conta do fluir; o gato sossegou depois de posta a vasilha sobre a cômoda, enxugada de qualquer jeito; o felpudo não buscou a ração, deu-se por satisfeito, aquietou-se na cama, sentado sobre as patas traseiras, contemplando derredor com ares atentos. Ela o contemplou, num curto instante, um minuto, no máximo: realizava o que antes alguém havia dito acerca dos gatos, enfim, e que agora via, de que eles seriam mentalmente próximos das pessoas, o que conferiria, talvez, temperamento similar; talvez isso fosse bobagem, não importava. Observava o gato com sua cabeça desproporcionalmente pequena em relação ao corpo, pois ele era grande, maciço, esbelto e musculado mesmo castrado; ativo e algo brigador, embora não vivesse mais sujo e cheio de cicatrizes; a pelagem brilhava, as patas eram intensamente brancas, como se usasse meias; branco o qual se espalhava pela barriga, peito e boca; pois o dorso, até o focinho e a parte superior dos membros, era malhado de preto sobre uma pelagem cinza escura com o subpelo amarelo pálido. Sob a luz o pelo brilhava bonitamente. Lindo, ela pensava.

Instante terminado. Volta à faina: retirar a água, separar o que por ela não foi arruinado, limpar a escória trazida pela chuva. A labuta seguiu a noite toda.



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